Contexto
Dizem-nos que a realidade é aquilo que se vê. Mas há uma porção do mundo — talvez a mais funda, talvez a mais nossa — que não se traduz só em imagem. Habita o interstício entre a memória e o corpo, entre o gesto herdado e o silêncio que não soubemos nomear. É nesse lugar — feito de palavras não ditas, risos partilhados, sentidos que ecoam no corpo — que se inscreve ivu’kar, o projeto de autoria de Grilo, que está em residência artística durante o mês de abril, no espaço d’A Turma.
Construído a partir de uma conversa de dez horas entre mãe e filho, ivu’kar propõe um mapeamento do invisível, um arquivo íntimo das pequenas eternidades que moldam quem somos.
A 4 de maio, Dia da Mãe, às 18h00, no espaço d’A Turma, todos estão convidados a assistir à segunda partilha pública do processo de criação de ivu’kar.
Nesta conversa, atravessamos com Grilo as fronteiras do tangível. Falamos de linguagem inventada, de cuidado, de encontros, de memória. Procuramos escutar, por entre as suas palavras, os ecos do que ainda não tem forma, ou está em constante mutação.
Comecemos pelo princípio — se é que há princípio. ivu’kar nasce de uma conversa com a tua mãe, mas rapidamente se expande para algo que parece querer abarcar o mundo. Como foi esse momento inicial, esse clique, em que percebeste que esse diálogo podia ser o começar de uma viagem, uma linguagem, um arquivo?
Eu acho que já estou a pensar neste projeto há muitos anos, mesmo sem me aperceber. Quando era pequeno, tinha dois ou três anos, eu e a minha mãe inventámos uma língua imaginária e falámos essa língua durante muito tempo. Não era muito estável, no sentido em que não era feita de códigos que se repetiam; era uma língua mutável, que estava em constante transformação. Desde então experimentávamos formas diferentes de diálogo, que eram, já naquela altura, pluridisciplinares, antes mesmo de eu me relacionar com esta palavra e imaginar que isso se podia referir a dança, música, luz, pensamento. Acho que foi por isso que me tornei uma pessoa um bocado sinestésica.
A certa altura, comecei a pensar muito na ideia de que, por muito longa que seja uma relação, estamos sempre a re-conhecer o outro.
Eu e a minha mãe tínhamos uma dinâmica de nos estarmos sempre a cumprimentar de novo. Para além disso, há uma altura na nossa vida em que nós trocámos de papéis: começo a ser eu a cuidar dela, e essa inversão de papéis foi muito interessante do ponto de vista identitário: como é que isso influencia toda a nossa concepção do mundo e da nossa existência? Porque eu passei a ser a mãe e, simultaneamente, o filho, e ela vice-versa. O ivu’kar é uma expansão desta experiência, de uma linguagem em desenvolvimento, do nosso amor.
A palavra “subliminar” aparece logo na descrição do projeto — um termo que, por si só, já sugere uma outra camada de realidade. Que tipo de invisíveis te interessa resgatar?
Eu e a minha mãe tínhamos um fascínio partilhado que, por exemplo, está a acontecer agora: eu estou a ter uma conversa contigo e estamos a usar uma data de códigos, que neste caso são palavras, trata-se da linguagem verbal. Através dessa linguagem há um suposto encontro entre nós, não é? A questão é que quando digo, por exemplo “água”, tu tens uma data de concepções sobre esta palavra, que com certeza não serão as mesmas que as minhas. Nós achamos que estamos a aceder ao mesmo, mas no fundo não estamos a ver a mesma coisa.
Isso fascina-nos, esta ideia das entrelinhas, do subtexto, ou de uma tradução “mal feita” que dá origem a narrativas novas, ficções, abstracções.
Que papel tem o corpo na criação de novos códigos, desta dita “linguagem imaginária, plástica, sonora e simbólica”?
Neste momento, estou a explorar várias formas diferentes de abordar estas questões com o corpo. Estou a aprender língua gestual, portanto há uma parte textual que poderá ser transmitida dessa forma. Para além disso, esta conversa que eu tenho com a minha mãe durante dez horas foi toda traduzida para o código morse, e esse código é a estrutura que dá origem à música, ao desenho de luz e, eventualmente, ao movimento do corpo. Por exemplo, se eu caminhar ao ritmo do código morse, em vez de estar simplesmente a andar, estou a construir uma narrativa, uma camada subliminar que tem uma dimensão evocativa e abstrata.
Vivemos num tempo em que tudo parece precisar de ser visível e registado para existir, como se a memória só pudesse acontecer com prova visual, se couber num ecrã. Neste contexto, onde fica o espaço do invisível, do imaginado, do que só vive em nós? Achas que, com o excesso de estímulo e de registo constante, estamos a perder a capacidade de lembrar com profundidade?
Sim, acho que a nossa atenção é posta à prova diariamente e que somos de tal forma sobrecarregados de informação que é difícil manter uma prática de imaginação. A memória é, de certa forma, um exercício de ficção. Mesmo uma imagem sobre algum aspecto ou acontecimento é sempre apenas um ponto de vista sobre o que representa. Dessa forma é, em certa medida, sempre ligeiramente ficcionada. Há uma forma de interagir com a memória, a ficção e a imaginação que eu adoro.
É certo que estamos absolutamente viciados em imagens, em informação, no nosso telefone e que a nossa atenção é diariamente posta à prova. Ainda assim, penso que a nossa memória opera num lugar muito próprio com o qual é possível interagir pluridisciplinarmente. Por exemplo: às vezes não passas na rua e há um perfume específico que te conduz brutalmente a um momento da tua vida? No ivu’kar, que é uma espécie de documentário ficcional, especulativo e mutável, há um desejo de refazer memórias. Uma memória, sendo uma abstração de um momento vivido, tem um caracter ficcional e nós temos sempre permissão para reinventar as ficções. É interessante pensar como é que isso também influencia a realidade.
Eu confio nos nossos sentidos e na nossa imaginação como lugar de reinvenção do mundo. E acho que, por reação a um mundo de informação bruto, os espaços férteis de imaginação são preciosos.
O que esperas que aconteça a quem atravessa ivu’kar? Há uma intenção de partilha, de contágio sensível neste convite a quem vem assistir?
Que bom seria se atravessássemos juntos o ivu’kar como quem atravessa a sua biografia, com as contradições, as viagens rápidas no tempo, um caos muito próprio e o espanto. Se for uma experiência colectiva de retradução infinita que multiplica as narrativas sobre a realidade.
Para a nossa equipa é muito precioso poder abrir o processo de criação várias vezes antes da sua estreia em Outubro. Temos interesse sobre as percepções e traduções que as pessoas farão acerca do ivu’kar. Ou seja, queremos que venhas, queremos encontrar-te, falar contigo, beber um sumo, mostrar-te coisas muito inacabadas e que não acabam.